O processo de criação

Aqui, você fica por dentro do passo a passo das repórteres Heloísa D’Angelo (arte e texto) e Joyce Gomes (texto) na criação da reportagem Quatro Marias:

1. Escolhendo as Marias
Depois da escolha do tema aborto, partimos para um desafio maior: encontrar mulheres que tivessem passado por isso e que topassem  contar essa história para duas repórteres. Não foi fácil. Como o aborto é crime, não podíamos simplesmente postar em grupos do Facebook pedindo que as possíveis entrevistadas se manifestassem.

Além disso, mesmo quando chegávamos às fontes, era frequente elas desistirem de conversar conosco – algumas com medo de alguém descobrir a identidade delas, outras sem vontade de revisitar a experiência. Aos poucos, depois de muitas conversas com pessoas que “conheciam alguém que conhecia alguém” que tinha abortado, conseguimos chegar às quatro Marias e entrevistar todas elas:

rodape

Maria Memória, Maria Julieta, Maria Dentro da Lei e Maria Mudança foram as nossas fontes

Como o tema é delicado, todo cuidado é pouco: as quatro entrevistas foram feitas pessoalmente, em lugares escolhidos pelas próprias fontes; os nomes de todos os personagens foram trocados e nenhum lugar que aparece na matéria é real. Os nomes falsos das protagonistas são todos “Maria”, mas pedimos que cada mulher escolhesse o segundo nome de sua personagem – e daí nasceram Maria Memória, Maria Julieta, Maria Dentro da Lei e Maria Mudança.

2. O roteiro
Depois de ouvir a história de cada Maria, a próxima tarefa foi transformar os relatos em roteiros para os quadrinhos. Foi um desafio, porque muita coisa teve que ficar de fora e, ao mesmo tempo, precisávamos ter cuidado para não passar informações que revelassem as identidades das Marias para os leitores. Junto com a escrita do roteiro, fomos pensando nos desenhos que se encaixariam melhor em cada trecho e, também, selecionando dados de pesquisas sobre aborto no Brasil – informações que, na nossa visão, poderiam contribuir para os relatos. Depois de prontos, os roteiros eram analisados pela nossa orientadora, Bianca Santana, e só então passávamos para a próxima fase…

Diferente do jornalismo tradicional, são as próprias imagens que cumprem o papel de informar em uma reportagem gráfica. Logo, os desenhos devem ser pensados e planejados de forma menos abstrata possível, pois são responsáveis pela compreensão do leitor com relação à narrativa a ao cenário apresentados. Apesar de não ser uma tarefa fácil de cumprir, escritores com menos experiência no mundo dos quadrinhos, como Joyce era no início do projeto, podem desenvolver um olhar artístico e utilizá-lo como reflexo das histórias contadas, como as Quatro Marias.

3. Criando as personagens
Um dos passos mais difíceis de Quatro Marias foi criar os desenhos das personagens. Primeiro porque não podíamos, em hipótese alguma, revelar quem eram as Marias – por isso, os desenhos precisavam ser o mais diferentes possível das entrevistadas reais. Além disso, a criação de personagens em quadrinhos, de qualquer forma, já é algo muito trabalhoso: o quadrinista precisa ter um domínio grande do personagem para que ele não saia diferente de um quadrinho para o outro, já que isso compromete tanto a imersão do leitor quanto a própria história (imagine se a cada quadrinho você precisasse parar para entender quem é determinado personagem?).

Para conseguir o domínio sobre o personagem, é simples: o quadrinista precisa criar padrões para o desenho (características marcantes, como sardas, um corte de cabelo, um formato de nariz) e, depois, praticar o desenho o máximo de vezes possível. No nosso caso, criamos cada Maria com uma altura determinada, com medidas do rosto bem estabelecidas e com características físicas marcantes:

esboco-pronto-2

Os estudos de cada personagem: todas as Marias foram desenhadas dezenas de vezes (inclusive em situações nada a ver com a reportagem, como dá para ver pela Maria Mudança que virou um elfo, ao centro), e ganharam modelos como o da direita, com anotações sobre as características das Marias – segundo os quais Heloísa guiava os desenhos em cada quadrinho.

esboco-5-pronto

Esta é a chamada “folha-guia” de um personagem: é uma espécie de gabarito para o quadrinista guiar seus desenhos, quadro a quadro. Nessas folhas-guia, cada Maria ganhou uma altura (definida em número de cabeças) e medidas específicas para os olhos, o nariz e a boca (definidos em olhos). Outras características também são anotadas nas folhas-guia: a altura de outros personagens em relação à Maria, a altura do cabelo e/ou da franja, a grossura dos braços e das pernas, o que muda quando o personagem se movimenta, diferentes expressões e ângulos e por aí vai. Quanto mais detalhes o personagem tiver, mais real ele parece.

4. Storyboard
Em português, storyboard pode ser traduzido como “plano de história” – e, na prática, ele é isso mesmo: uma versão desenhada do roteiro, na qual o quadrinista planeja cada página de acordo com a história, de um jeito simples e esquemático. Os nossos ficaram mais ou menos assim:

storyboard

Storyboard de quatro páginas da HQ Maria Memória junto com as respectivas páginas prontas

5. Desenhando a história
O roteiro, os planos de personagens e o storyboard demoravam mais ou menos duas semanas para ficarem prontos. Depois, vinha a parte mais complicada dos quadrinhos: desenhar a história para valer – um processo que geralmente leva três semanas ou mais. Heloísa usou folhas de papel Canson tamanho A4 e grafite para desenhar cada página (ela prefere fazer tudo a mão antes de passar para o digital, usando uma mesa digitalizadora). Mesmo depois da edição que as histórias sofreram no estágio da roteirização, ainda havia muito texto que podia ser cortado, já que os desenhos também informam.

Muitos desenhos foram tirados da cabeça de Heloísa; outros tinham como base imagens encontradas por Joyce (como é o caso da primeira página da HQ Maria Memória) ou fotografias de modelos, pessoas famosas ou até das próprias autoras:

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Aqui, Heloísa serviu de base para desenhar a posição da Maria Memória

Uma vez desenhadas as páginas, era hora da arte final – ou seja, contornar todos os desenhos com nanquim -, da digitalização e do tratamento das páginas em Photoshop (para que elas ficassem prontinhas para os balões de fala e para o texto):

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À esquerda: desenho em grafite de uma das páginas da HQ Maria Memória. Ao centro, a mesma página arte finalizada em nanquim e, à direita, a página digitalizada, já com os balões de texto.

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Outro exemplo do processo de criação de uma página de HQ, do desenho a lápis ao letramento (como se chama a colocação de texto)

No computador, usando programas como Photoshop e Indesign, também construímos os infográficos da reportagem e as páginas informativas – todas elas baseadas em desenhos feitos à mão por Heloísa:

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À esquerda: esboço da página informativa sobre a Pílula do Dia Seguinte, da HQ Maria Julieta. À direita, a página pronta.

6. Criando as capas
O último passo foi criar as capas das HQs, usando desenhos dos próprios quadrinhos e um desenho especial de cada Maria:

capas

Inspiração
Fazer quadrinhos é, em parte, ter boas referências. Aqui vão alguns dos quadrinistas e jornalistas que mais nos inspiraram em Quatro Marias (clique na imagem para saber mais):

2 comentários sobre “O processo de criação

  1. Parabéns! Trataram de forma delicada e verdadeira o assunto! Gostaria que todas as pessoas pudessem ler e abrir a mente em relação ao tem! Vocês são incrivelmente talentosas! Espero ver mais trabalhos tão bons assim!

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  2. Queridas autoras, o trabalho de vocês está fascinante e super interessante! Parabéns pela criatividade e sensibilidade em retratar de uma maneira mais leve esse tema tão pesado e rodeado de preconceitos. Parabéns também pela aula super detalhada e repleta de vários dados fundamentais a todos, sem exceção. Com admiração!

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